Névoa

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Eu estava ainda no pressono, aquele meu momento depois de ler mais um capítulo de um livro e antes de dormir, quando os pensamentos começam a virar devaneios que servem como introdução aos sonhos. Foi quando ouvi os gritos. Uma imensa série de pequenos gritos de pavor cortados antes de atingir sua intensidade plena. Fiquei curioso e, sem querer acordar minha mulher, sorrateei ao escritório onde abri a janela que dava para a rua. Olhando para baixo, a partir do sétimo andar, entendi o que acontecia graças aos gatos amontoados acima das árvores já tombadas. Todas as árvores da minha rua, percebi logo, estavam tombadas.

Rente ao chão, tomando volume, uma névoa azulada e levemente fluorescente parecia ter corroído a base das árvores, as derrubado e, agora, continuava a consumi-las. Um gato caiu da árvore, na névoa, soltou um leve miado e logo acabou-se em uma espumante gelatina avermelhada que, em alguns segundos, integrou-se à névoa. Os gritos que ouvi deviam ser de incautos transeuntes que tiveram um breve momento de susto em sentir seus pés corroídos, perder o equilíbrio e, como o gato, virar por segundos a espumante gelatina vermelha antes de ser só parte da névoa. Os gatos seguiam perdendo o equilíbrio e caindo da árvore que já quase não existia. Ouvi e vi os pombos acima, nas partes mais altas dos prédios vizinhos. Uma primeira luz acendeu-se em uma janela próxima. Logo várias outras. Pensei se devia ou não acordar minha mulher.

Tentei ligar o rádio, baixinho, para ver o que algum especialista de plantão dizia sobre a névoa, mas a luz elétrica acabou-se. O apagão foi geral nas janelas vizinhas. Pilhas, pensei. Mas assim como pensei logo desisti. As transmissoras de rádio precisam de energia elétrica e, de certa forma, eu entendi que o apagão foi geral, além das janelas vizinhas. Um vizinho bateu à minha porta. Decidi acordar minha mulher.

A reunião foi rápida. Os vizinhos dos andares superiores concordaram todos em manter suas portas abertas para acolher os dos andares inferiores caso o nível da névoa subisse. Mas era preciso experimentar formas de sairmos dos nossos apartamentos, pegarmos os carros e avançarmos para pontos mais altos da cidade. Mas a névoa já invadira totalmente a garagem subterrânea e chegava à beira da escada que levava ao térreo. Ela parecia, porém, só corroer material orgânico.

O teste foi feito com o cachorrinho da mulher do quarto andar. O voto no pobre animal foi unânime, já que ninguém tinha uma noite de sono ininterrupto desde que o cujo chegara ao prédio. Uma grande geladeira de isopor, destas de guardar cerveja, foi usada para acomodar o cachorro e totalmente vedada com fita plástica grossa. O cachorrinho teria alguns minutos de oxigênio para que o teste pudesse ser concluído. Mas a verdade é que ninguém estava muito preocupado com a sobrevivência da besta. Amarramos algumas cordas que fomos colhendo entre os vizinhos e alçamos o animal, dentro de sua jaula supostamente hermética, ao térreo. Com luvas abrimos a geladeira após içá-la apenas para ver a gelatina espumante que, com medo, jogamos com geladeira e tudo janela abaixo. A dona do cachorrinho atirou-se, de pronto, janela abaixo também.

Ninguém mais ocupava os apartamentos do primeiro andar.

Organizamos uma rotina. Duas pessoas, por turno de duas horas, vigiavam o progresso da névoa, que só subia. Os demais observavam a movimentação nos prédios vizinhos para ver se alguém saía-se com alguma ideia milagrosa.

Uma barulheira imensa em um prédio vizinho. Percebemos que uma turma descia os andares pela movimentação das luzes das lanternas e ficamos observando a porta do prédio. Logo apareceram dois homens com tanques de ar, roupas de mergulho completas e, percebia-se, vedação adicional no rosto e em todas as junções das roupas. Gritamos como loucos: não, Não, NÃO! Apontamos para a geladeira na esperança que tivessem observado nossa fracassada experiência. Bastou poucos passos para que as roupas de mergulho murchassem aos nossos olhos e os tanques caíssem no chão produzindo duas badaladas lúgubres.

Ninguém mais ocupava os apartamentos do segundo andar.

Minha mulher e eu deixamos a porta de nosso apartamento aberta, como combinado, mas resolvemos voltar à nossa cama. Afinal, de que adiantava a observação, a vigília, se nada havia a fazer contra a névoa cáustica. Sem conseguirmos nos comunicar com ninguém apenas pensávamos em como estariam nossas filhas, nossos pais. A mesma coisa estaria acontecendo em Porto Alegre? Em São Paulo? Em Dublin? Ficamos abraçados um ao outro, chorando baixinho no terror da dúvida.

Ninguém mais ocupava os apartamentos do terceiro andar.

Dizem que, no momento da morte, uma pessoa vê o filme de sua vida projetado à sua frente. Mas e quando a morte não tem um momento mas anuncia-se aos poucos, deixando dúvida se ela, efetivamente, se consumará? Talvez estivéssemos passando pela mesma sensação de um doente terminal, vendo a morte chegar mas alimentando a esperança de um milagre. As carolas do prédio estavam agora reunidas, fazendo uma novena completa nas horas que ainda nos eram concedidas.

Ninguém mais ocupava os apartamentos do quarto andar.

Acima do nosso andar só havia mais um. Depois era o telhado do prédio ao qual tinha-se acesso por uma escada vertical com degraus irregulares e bem afastados uns dos outros. Tive que subir nela apenas uma vez para instalar uma antena para meu rádio de ondas-curtas. Foi um parto. Quatro de nossos vizinhos, dois casais, já tinham idade bem avançada e pensávamos em como içá-los ao teto quando isso fosse necessário. Mas os quatro já haviam feito um pacto entre si. Aquelas horas de sofrimento estavam sendo penosas demais. Eles já haviam vivido a sua plenitude e a velhice, agora, os punia com desconfortos demais. Se a névoa avançasse até o quinto andar, onde moravam, eles apenas a esperariam, conformados.

Ninguém mais ocupava os apartamentos do quinto andar.

A porta de nosso apartamento seguia aberta. Alguns vizinhos jogavam canastra na mesa de nossa cozinha. Pensávamos se faríamos como os velhinhos ou se subiríamos ao telhado quando a névoa nos encurralasse. Nos demos ao direito de um último momento de privacidade. Trancamos a porta do nosso quarto e fizemos um amor doído, sofrido e muito verdadeiro. Conseguimos dormir, abraçados, por cerca de uma hora.

Ninguém mais ocupava os apartamentos do sexto andar.

Bateram à porta e pediram minha ajuda. Uma família no oitavo andar decidira por trancar sua porta e não deixar ninguém entrar. Os demais vizinhos queriam arrombá-la. Tentei argumentar que isso não deveria ser feito. Poderíamos nos acomodar nos corredores e nos demais apartamentos. Alguns estavam comigo, mas a maioria optou pelo arrombamento. Não havia mais ninguém no apartamento e as janelas estavam todas abertas. A névoa já estava à beira do sétimo andar e eu e minha mulher decidimos por pegar uma foto de nossas filhas, os telefones celulares e seus carregadores na esperança de que, caso a névoa baixasse, a energia poderia voltar e saberíamos como estavam nossas filhas, famílias e amigos queridos. Subimos ao oitavo andar.

Ninguém mais ocupava os apartamentos do sétimo andar.

Em um prédio de oito andares, quatro apartamentos por andar e uma média de três pessoas por apartamento, éramos mais de 90 pessoas empinhocadas no último andar do prédio. Foi quando a névoa começou a subir com maior velocidade, conforme aviso dos sentinelas que, ao dar o alerta, já correram para a escada que levava ao telhado seguidos por quase todos que gritavam, estapeavam-se e buscavam, ao mesmo tempo, avançar por uma escada que permitia apenas um de cada vez.

Olhei para a minha mulher, nos demos as mãos e começamos a descer em direção ao sétimo andar já tomado pela névoa. Antes de pisarmos nela nos beijamos e dissemos nosso “eu te amo” um ao outro. Não senti nada além do susto inicial da perda do equilíbrio quando meus pés sucumbiram. Também não perdi minha consciência. Abraçado à minha mulher e desfazendo-me com ela passamos a fazer parte um do outro e, em seguida, parte de uma consciência coletiva maior, a consciência da névoa. Desta forma sentimos que nossas filhas estavam conosco, nossa família, nossos amigos. Éramos a névoa. Olhamos para aquelas pessoas logo acima de nós, praticamente matando umas as outras em uma primitividade até há pouco inconcebível, tentando vencer às dezenas um espaço que permitia apenas um por vez e desistimos delas, que nos olhavam com espanto enquanto voltávamos a nosso leito.



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